domingo, 19 de abril de 2009

Diário dos Meus Últimos Dias



O dia foi calmo. O sol planeava agora uma saída de cena plena de subtileza. Era início de Primavera. Pela janela, ouvia-se um chilrear incansável. A sala, sempre escura, não se deixava iluminar pelo sol ou por qualquer outra réstia de felicidade. Estava sempre igual, numa rotina circular. Nela, jazia um casal idoso. O homem, de face robusta e olhos cansados, fitava a televisão, que emitia uma imagem a tão desfocada que os pivôs se confundiam com sombras misteriosas. A seu lado, com uma cesta cheia de bordados em ponto-cruz e um caderno velho, estava a sua mulher, que olhava pela janela o magnífico pôr-do-sol, sonhando com a possibilidade de lhe tocar. Então, pousou a cesta e pegou no caderno. Começou a escrever. No topo da página gatafunhou “Diário dos Meus Últimos Dias”:

                             

“Quando a ameaça da inexistência é eminente, temos tendência para apreciar a minuciosa simplicidade de cada milímetro da natureza. Aprendemos a sorrir. Aprendemos a modéstia, a submissão. Até o tempo nos fascina - não há nada mais reconfortante do que viver cada segundo como se tratasse do último. Não ficamos senis, mas sábios. Perdemos a noção da Eternidade, o que nos deixa ver através dela e entender que tudo acaba e, somente porque acaba, pode ser belo. Em vez de escravos do tempo, tornamo-nos aprendizes da sua sabedoria. Descobrimos o segredo da perfeição. Falo por mim, pelo menos. Passei o meu tempo demasiado ocupada; tão ocupada que não me apercebi que me estava a afastar da minha própria vida. E quando percebi, já era demasiado tarde. Já tinha perdido os amigos. Tinha maltratado o meu maior tesouro. Tinha esquecido o significado de amor, como se nunca o tivesse experimentado realmente. Estava só.Agora, pouco mais do que só me sinto. Tenho o meu marido comigo em todos os momentos, mas é raro aperceber-me da sua presença. O fogo dos nossos corações foi-se apagando e agora estamos absurdamente distantes. Não há diálogo; apenas monólogos, cuja “resposta” é sempre a variante de um grunho imperceptível. Mas não me posso queixar. Afinal, ignorei-o durante toda a minha vida. O erro foi meu. Fui eu quem se fechou e recusou pronunciar todos os sentimentos. O muro, entre nós erguido, parte de mim. Ele passou os 56 anos do nosso casamento a tentar quebrá-lo, enquanto eu o cimentava, para que ninguém percebesse que eu sofria. Acabou por desistir. E agora, dava tudo para que ele voltasse a tentar. Recuso-me a morrer sem sentir a chama a arder de novo no peito. No entanto, sei que não tenho muito tempo.”

 

Enquanto escrevia, uma lágrima correu lhe pelo rosto, quebrando o silêncio mortífero da sala. Sorrateiramente, encaminhou-se, para a cozinha, deixando para trás o caderno. Sempre atento, o marido puxou-o para si. Lei-o e as lágrimas lavaram-lhe o rosto.Agarrou a caneta e numa caligrafia desajeitada e claramente masculina, escrevinhou:

“Só é tarde para quem quer que assim o seja, meu amor. Vem incendiar a minha alma.”

Com um sorriso vazio na face, a mulher entrou na sala. O marido estendeu-lhe o caderno, de olhos fixos na televisão, mas apenas atento à suave melodia dos passos assustados da mulher. Lendo a linha do marido, pousou o caderno. Sentou-se no seu colo e beijou-lhe o canto da boca, com uma intensidade dócil. O seu sorriso brilhava tanto que iluminou a sala escura. De mãos dadas, flutuaram até ao jardim. Ali, deitados sobre a relva verde e fresca, partilharam a colisão de um beijo profundo e perderam-se nos sonhos.

E com o mundo petrificado na Eternidade, enganaram o tempo.